sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Sobre racionalismos, criminologias e dogmática penal.


"O próprio do acontecimento é que ele se dá de maneira inesperada, o que torna bem difícil sua percepção por uma lógica linear, a partir de um causalismo unívoco." MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. RJ: Vozes, 1998, p. 57.

Essa frase resume bem o que atravessa, por enquanto, a temática central do meu paper da disciplina do Salo: ao buscar alguma ideia para discorrer sobre criminologia cultural, a pertinência da crítica de Maffesoli à razão abstrata que dominou a modernidade é um ponto absurdamente próximo àquele que, na criminologia, muito me interessa.
Em determinado momento de seu livro, o autor destaca algo que há muito eu gostaria de dizer mas que, no entanto, ainda não tinha me aventurado a tentar: "a representação foi, em todos os domínios, a palavra mágica da modernidade." (1998, p. 19)
Eis aí algo que me deu o que pensar: em termos de representação, a falência do atual modelo de justiça criminal estava desde o início decretada: local por excelência de puras, simples e alucinadas representações (pra lembrar um termo pandolfiano), em que o afastamento do não-racional é defendido a todo custo em nome de uma pretensa isenção metodológica, não haveria lugar para o imaginário, para o imprevisível, para a desordem e a efervescência, para uma "topografia da incerteza" ou para o trágico. Calcada em uma literatura com "tom de anteontem", nega justamente um aspecto inseparável do humano: a sua animalidade. Representado na figura bíblica da criação feita à imagem e semelhança de seu criador (Deus), o humano não teria permissão para não ser perfeito, dado que possui seu incontestável livre-arbítrio em perfeito estado e, uma vez que racional, poderia optar por não percorrer o trajeto criminoso.
A racionalidade abstrata que fundamenta e justifica o direito penal, hoje, é possível apenas desde uma criminologia que esteja arraigada, ainda, em pressupostos modernos (ou até mesmo em alguns ainda mais mofados): a partir da crença em um humano apto a discernir racional e conscientemente entre uma conduta lícita e outra ilícita, evidente que a causa do crime só pode estar no próprio criminoso, e em nenhum outro lugar: apesar das valiosas contribuições da criminologia da reação social, ainda não somos capazes de perceber o crime na sua inteireza e em toda a sua intensidade. Ao passo que nego a complexidade da vida e assumo a absoluta simplicidade ao falar de "conduta humana (racional e consciente) típica, ilícita e culpável", afasto a vida justamente naquilo que ela é: complexa, caótica, não-racional, inexplicável, trágica, humana...
Ao opor apresentação à representação, Maffesoli destaca que aquela "se contenta em deixar ser aquilo que é, e se empenha em fazer sobressair a riqueza, o dinamismo e a vitalidade deste 'mundo-aí'." (1988, p. 20) Para o autor, "a apresentação sublinha que não se pode jamais esvaziar totalmente um fenômeno, isto é, qualquer coisa de empírico, de empiricamente vivido, através de uma simples crítica racional." (p. 20) Tal "deixar-ser" não implicaria, segundo ele, em "um 'deixar-correr' intelectual. Pelo contrário, ela requer uma ascese, a de não se fazer o jogo do demiurgo que manipula, ao seu bel-prazer, aquilo que convida a ser visto, em favor daquilo que se desejaria que fosse." A apresentação seria, em síntese, "mais escrava do que senhora da realidade social ou natural" (p. 20), ou seja: saberia "integrar, em doses variáveis, o zelo estético no próprio seio da progressão intelectual." (p. 21)
Quem sabe assim possamos, mesmo que timidamente, começar a abandonar as malditas concepções positivistas para buscar não só uma outra linguagem, mas uma outra percepção das principais questões criminológicas...

5 comentários:

Unknown disse...

Por ai velho... Desde o inicio...

Moysés Neto disse...

Duas críticas:

1 - Me parece que nem todas as formulações modernas se baseiam no homem "apolíneo". Não é justamente o contrário? Quer dizer: o criminoso não é justamente o bárbaro, o irracional, o trágico, o louco?

2 - Não sei o que vocês vêem no Maffesoli. :D

Achutti disse...

pois é, meu, mas aí é que tá!! a ideia é perceber justamente as representações que estão por trás dessas noções e a maneira como são encaradas...

Maffesoli manda bem demais, meu!! hehe...

Ricardo Timm de Souza disse...

..."Na medida em que de fato toda cultura toma parte no contexto de culpa da sociedade, ela deve sua existência à injustiça já cometida na esfera da produção. (...) É por isso que a crítica cultural desloca a culpa: ela é ideologia, na medida em que permanece como mera crítica da ideologia. Os regimes totalitários..., buscando proteger o status quo das últimas inconveniências de uma cultura já reduzida à condição de de lacaio, conseguem convencer pela força essa cultura, e sua auto-consciência, de seu servilismo. Eles atacam o espírito, que já se tornou insuportável em si mesmo, e com isso ainda se sentem purificadores e revolucionários. A função ideológica da crítica cultural atrela à ideologia sua própria verdade, a resistência contra a ideologia. A luta contra a mentira acaba beneficiando o mais puro terror. 'Quando ouço falar em cultura, destravo meu revólver', dizia o porta-voz da Câmara de Cultura do Reich de Hitler" (T. ADORNO, Prismas).

Anônimo disse...

Uma delícia de blog!!!

Bj