"O próprio do acontecimento é que ele se dá de maneira inesperada, o que torna bem difícil sua percepção por uma lógica linear, a partir de um causalismo unívoco." MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. RJ: Vozes, 1998, p. 57.
Essa frase resume bem o que atravessa, por enquanto, a temática central do meu paper da disciplina do
Salo: ao buscar alguma ideia para discorrer sobre criminologia cultural, a pertinência da crítica de Maffesoli à razão abstrata que dominou a modernidade é um ponto absurdamente próximo àquele que, na criminologia, muito me interessa.
Em determinado momento de seu livro, o autor destaca algo que há muito eu gostaria de dizer mas que, no entanto, ainda não tinha me aventurado a tentar: "
a representação foi, em todos os domínios, a palavra mágica da modernidade." (1998, p. 19)
Eis aí algo que me deu o que pensar: em termos de representação, a falência do atual modelo de justiça criminal estava desde o início decretada: local por excelência de puras, simples e
alucinadas representações (pra lembrar um termo
pandolfiano), em que o afastamento do não-racional é defendido a todo custo em nome de uma pretensa isenção metodológica, não haveria lugar para o imaginário, para o imprevisível, para a desordem e a efervescência, para uma "topografia da incerteza" ou para o trágico. Calcada em uma literatura com "tom de anteontem", nega justamente um aspecto inseparável do humano: a sua animalidade. Representado na figura bíblica da criação feita à imagem e semelhança de seu criador (Deus), o humano não teria permissão para não ser perfeito, dado que possui seu incontestável livre-arbítrio em perfeito estado e, uma vez que racional, poderia optar por não percorrer o trajeto criminoso.
A racionalidade abstrata que fundamenta e justifica o direito penal, hoje, é possível apenas desde uma criminologia que esteja arraigada, ainda, em pressupostos modernos (ou até mesmo em alguns ainda mais mofados): a partir da crença em um humano apto a discernir racional e conscientemente entre uma conduta lícita e outra ilícita, evidente que a causa do crime só pode estar no próprio criminoso, e em nenhum outro lugar: apesar das valiosas contribuições da criminologia da reação social, ainda não somos capazes de perceber o crime na sua inteireza e em toda a sua intensidade. Ao passo que nego a complexidade da vida e assumo a absoluta simplicidade ao falar de "conduta humana (racional e consciente) típica, ilícita e culpável", afasto a vida justamente
naquilo que ela é:
complexa, caótica, não-racional, inexplicável, trágica, humana...
Ao opor
apresentação à representação, Maffesoli destaca que aquela "se contenta em deixar ser aquilo que é, e se empenha em fazer sobressair a riqueza, o dinamismo e a vitalidade deste 'mundo-aí'." (1988, p. 20) Para o autor, "a apresentação sublinha que não se pode jamais esvaziar totalmente um fenômeno, isto é, qualquer coisa de empírico, de empiricamente vivido, através de uma simples crítica racional." (p. 20) Tal "deixar-ser" não implicaria, segundo ele, em "um 'deixar-correr' intelectual. Pelo contrário, ela requer uma ascese, a de não se fazer o jogo do demiurgo que manipula, ao seu bel-prazer, aquilo que convida a ser visto, em favor daquilo que se desejaria que fosse." A apresentação seria, em síntese, "mais escrava do que senhora da realidade social ou natural" (p. 20), ou seja: saberia "integrar, em doses variáveis, o zelo estético no próprio seio da progressão intelectual." (p. 21)
Quem sabe assim possamos, mesmo que timidamente, começar a abandonar as malditas concepções positivistas para buscar não só uma outra linguagem, mas uma outra percepção das principais questões criminológicas...