sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Sobre (in)tolerância e direito (penal)...

Francisco Goya: "O Três de Maio de 1808" (1814)
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"A pretexto de preservar o 'princípio da segurança jurídica', a doutrina sói defender, no entanto, a necessidade de se adotarem critérios/métodos no sentido de encontrar a 'única resposta correta', invocando, para tanto, metáforas como o 'espírito da lei' e semelhantes, já em si uma tática argumentativa. No entanto, além de incorreto, isso não seria nem justo nem conveniente, pois uma tal idéia, absolutamente incompatível com uma sociedade multicultural e multifacetada, é própria de uma ideologia antiliberal, que não acolhe, antes rechaça, as diferenças - de sexo, de raça, de cultura etc. Ademais, pretender unir ciência à idéia de unidade, de pureza, de prefeição, quer se refira à política, quer se refira à religião, quer se refira ao direito, é sempre algo perigoso e tendencialmente tirânico, e que há de ser, por isso, permanentemente combatido. No particular, nada há, pois, a lamentar, muito ao contrário: com abolir semelhante preconceito, abrem-se novas possibilidades para um direito penal fraterno e mais democrático, porque reconhecer a incerteza e a diversidade no direito é reconhecer a incerteza e a diversidade mesma do humano. A não ser assim, poder-se-á substituir, no futuro, os atuais juízes por sofisticados programas de computador."

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 63-64.


Enfim, um manual de direito penal digno de nota. Ao longo do livro, a vontade de continuar a ler só aumenta, e o posicionamento crítico e coerente do autor demonstram, sem a menor dúvida, a qualidade da obra.

Excelente!

12 comentários:

Anônimo disse...

NAAAAAO! tem mais

JUAREZ CIRINO: Dir. Penal. Parte Geral. Lumen Juris: 2007. DIGNISSIMO de nota!

Mas o 'PQ' (como chama o Bizzotto), de fato COMANDA.

Achutti disse...

Bem lembrado!!!

Juriká disse...

O que significa "ideologia antiliberal"?
Não entendi o objetivo? Queremos voltar à Modernidade? De que Liberalismo falamos? Beccaria, Bobbio, Ferrajoli? De que forma estamos queremos interpretar os princípios penais? Será que eles nos levarão para uma sociedade mais ordeira? Qual a diferença entre sociedade ordeira e sociedade pura?
Não parece que há algo por traz da construção desse discurso e que lhe impede de transgredir o próprio mito do qual é filho?
Não me parece que basta criticar a segurança jurídica e ao mesmo tempo matematizar a presunção de inocência, como alerta Foucault.
Que se radicalize as críticas, então! Que se vá à raiz! Que se vá aos fundos dos poços; e de lá tragam sapos, porque, penso, o direito fraterno e democrático é o oposto da justiça.

Unknown disse...

Pandolfo, ainda estamos lidando com a Inquisição, acho que lidaremos sempre com a inquisição, então a crítica liberal é ainda, infelizmente, pertinente e necessária.

orontes pedro disse...

Mas, Achutti, acho que o futuro será esse, mesmo: o juiz programa de computador. O próprio judiciário já vem demonstrando isso com essas reformas sobre o julgamento de recursos repetitivos. Não existe fulano ou fulana. Existe um número na capa do processo. Aliás, hoje todos nós já somos números. RG, CPF, OAB, CNH...

Achutti disse...

Juriká: em se tratando de direito penal e como estamos lidando com ele hoje, o Mayora tem toda razão: simplesmente não podemos esquecer que ele existe, sim, e que todo o liberalismo é mais do que bem-vindo. Basta pegar qualquer decisão pra perceber isso e ver que temos mesmo que utilizar essas críticas.

Orontes: ao passo que viramos cada vez mais números, o Alberto Binder diz que o processo penal deve, necessariamente, ser regido pelo princípio da identidade física do juiz, pois a justiça penal exige que saibamos nome e sobrenome de quem irá julgar o caso. Interessante a crítica dele, que vai na contramão de muita porcaria que tem acontecido por aqui...

Abraços!!

Juriká disse...

Amigos, eu descordo. Não se trata apenas de um ranço com (e contra) a Modernidade. É mais que isso. Não acho que se dê pra legitimar um espaço de violência, apenas porque "não temos algo melhor". Isso é tão falacioso e insustentável quanto os "princípios" jurídicos. É justamente o contrário do que se propõe: é irracional na medida em que pretende ser o cume da racionalidade, penso.
Supondo que ainda lidamos com a inquisição, isso ocorre, também, porque o Liberalismo não conseguiu superá-la; porque, então, acreditar nele?
É, parece-me, sempre e apenas uma questão de crença. São, sempre opiniões.

Achutti disse...

Tu tá coberto de razão, meu!!
Mas a questão é que em sala de aula e nos processos penais (que existem e não temos como ignorá-los), a gente precisa trabalhar com alguma coisa, e mesmo que eu tenha pavor do sistema penal (e tenho mesmo!), não posso abrir mão de determinada postura.
Se nos mantivermos sem nenhuma frente argumentativa nesses locais, vamos propiciar cada vez mais espaços livres para o poder. Creio que podemos adotar um argumento de luta "dentro" do sistema (liberalismo) e outro "fora" (abolicionismo e propostas restaurativas) sem, no entanto, nos considerarmos legitimadores de toda essa violência. Ainda não temos condições de abrir mão dos postulados liberais, infelizmente. Como tu disse, é tudo uma questão de crença, e o fato de não concordarmos com o sistema e buscarmos algo diferente significa que já admitimos que ele existe. E se sabemos isso, inevitável adotar uma "estratégia" de trabalho que possa, dentro do possível HOJE, reduzir danos.
Só não deixa de discordar de novo, velho, pq tudo o que não podemos é nos deixar levar pelo discurso falacioso da legitimação do poder e deixar de discutir o principal. Discorda de novo, meu, por favor!! Abraço!!

Moysés Neto disse...

Pan, não vejo como quebrar tudo de uma vez só. Acredito mais no reformismo do que numa espécie de negação completa.

A rejeição total de tudo não vai convencer ninguém, é preciso o mínimo de racionalidade estratégica.

Por outro lado, cada vez mais dou razão ao Timm quando ele fala de Adorno.

Tô, por isso, com o Achutti e o Mayora, embora no fundo esteja mais próximo do que parece da tua posição, especialmente por um ceticismo cada vez maior com o garantismo e suas promessas. Especialmente o garantismo brasileiro que só protege o "super-cidadão".

Achutti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Achutti disse...

A arte nos ajuda quando faltam as palavras: acrescentei o 03/05/1808 do Goya pra perguntar: onde está o rosto daqueles que nos condenam e matam? No sentido contrário, os rostos daqueles que matamos estão sempre visíveis e sabemos exatamente quem eles são.
A guerra, como justificativa para a ampliação do poder, nada mais traz do que morte e desgraça. Entretanto, como sabemos bem quem vamos matar, nada importa, ninguém importa: o que importa é continuarmos a busca e a manutenção desse poder.
Sistema penal e lixo são a mesma coisa: não existe solução para nenhum deles - a não ser uma mudança completa e radical disso que temos hoje, sob pena de continuarmos com a matança...

Moysés Neto disse...

ps: todo mundo detonando Lênio