segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O Dia do Meu Velório

René Magritte: "A la rencontre du plaisir" (1950)
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Continuo sem entender o motivo de tanta tristeza. Já está tudo marcado: amanhã, 11h, será o meu velório. O meu velório. Ou seja: estarei morto, falecido, duro, apresuntado! Mas, ainda assim, ela persiste...

Talvez seja justamente por isso: estou triste pois sei que, amanhã, já não estarei mais entre nós. Ou entre vocês? Não sei mais... “Entre os vivos”. Melhor assim. No entanto, diante dessa irrefutável fatalidade, penso que seria demasiado simples explicar a minha tristeza e a minha angústia pelo fato de que não mais viverei. Muito simples. Não é isso. Deve haver outro motivo...

Por mais que pense, não chego a nenhuma conclusão. Pode ser que seja por causa das despesas: contratei um serviço de distribuição de lenços – de papel e de pano, em diversos tamanhos e cores – e aluguei uma máquina de café expresso, pro pessoal que ficar muito tempo por lá e sentir vontade de tomar um. Não será preciso tirar o olho do defunto – ou seja, de mim: basta ir até a máquina e apertar o botão do café desejado.

Não, acho que isso também não é. Afinal, esse gasto eu já havia previsto desde os meus 19 anos, quando fui a um velório em que todos choravam e se lavavam com as lágrimas. Daí a idéia dos lenços grátis. E aos 22, fui a um em que as pessoas tomavam muito café – mas, para isso, tinham que deixar o presunto ali, às moscas, como se tivesse mesmo morto. Uma coisa é saber que a pessoa morreu. Outra, bem diferente, é deixar a carcaça ali, sozinha. Isso eu não gostaria para mim, pois geralmente as capelas em que se velam os mortos são um tanto assustadoras. Talvez a minha idade à época tenha colaborado pra me assustar, mas a questão é que fiz um planejamento matematicamente perfeito e, ao longo desses 46 anos desde então, juntei o suficiente para não ficar sozinho na capela e para oferecer, mesmo que post mortem, café aos meus convidados. Não sei bem se posso chamá-los de convidados, mas o fato é que convidei alguns. Outros, como é de praxe, certamente aparecerão de furo. É a lógica humana: só somos valorizados em morte, quase nunca em vida. Nem nos meus melhores aniversários, quando eu estava (estou?) vivo e convidava uma penca de pessoas, aparecia tanta gente! Tenho certeza disso: amanhã, quando já não mais estarei “entre os vivos”, teremos casa cheia. Vai entender...

Por falar em entender, concluo que também não é esse o motivo da minha tristeza. Talvez a tristeza não seja assim tão simples de ser explicada. Nem meus 32 anos de análise, agora, estão sendo úteis, pois não consigo ir além do que já fui na minha auto-interpretação. Se bem que posso estar vendo aquele filme que, segundo dizem, passa na hora da nossa morte, em que vemos e recordamos os melhores momentos de nossas vidas. Mas, no meu caso, tenho que admitir que não estou vendo esse filme. Estou, aliás, lembrando dos meus piores momentos. Lembro daquele dia em que vi minha melhor amiga ser humilhada em plena Praça XV por uns idiotas, e nada fiz. Covarde, apenas aguardei que eles saíssem dali para, “em segurança”, poder ir lá falar com ela. Catso!! Como pude ter sido tão passivo, tão inerte, tão babaca?! Nunca consegui superar isso, nem a análise ajudou nesse sentido...

Lembro também do dia em que aceitei, passivamente, que um vendedor de uma loja de roupas fosse humilhado na frente de todos pelo seu patrão. Nunca aceitei isso também, pois apenas mostrou que sou mesmo um covarde... apesar de não ter absolutamente nada a ver com a vida dele, deveria tê-lo apoiado, ter dito que errar é humano, essas coisas que, no momento certo, ajudam a amenizar um pouco... Como me arrependo de ter sido tão covarde... depois que a merda tá feita, fica fácil analisar e pensar na “solução”, eu sei disso – mas o fato é que não esqueço esses episódios lamentáveis do meu passado, da minha memória, triste memória...

Uma outra possibilidade é o fato de que, em vida (não sei por qual razão falo como se já estivesse morto...), não consegui descobrir o sentido da própria vida. Afinal, como eu amanhã – e vocês, com certeza, no futuro – acabaremos todos em capelas, velórios, caixões, cemitérios... Acabaremos todos “mortinhos da silva”, em suma. Quais seriam os motivos das guerras, da violência, da humilhação, das bombas atômicas, das mortes banais, dos campos de concentração, do racismo, do machismo, dessas desgraças todas?! TODOS, sem exceção, acabaremos MORTOS. Isso é inexorável, é a regra que confirma que todas as regras têm uma exceção. Em sendo a única exceção, confirma a regra! Então, por que tudo isso?! Onde se escondem os humanos? Atrás de armas, grades, portarias, equipes de segurança? Links, nicknames, mecanismos supermodernos na tentativa desesperada de estabelecer pseudo-relacionamentos...? Onde está toda a gente que, dizem, habita este planeta?! 6 bilhões de pessoas!! Imagino quantas pessoas interessantes não existem por aí... A pena é que só conhecemos poucas delas. Pelo menos foi o que aconteceu comigo... Talvez pela minha covardia, sempre temi sair por aí e falar com qualquer um que me cruzasse o caminho... A minha covardia... Bah...

Acho que, como diria o Analista de Bagé, “isso não é um problema, é frescura! Problema é a zaga do Guarani, que tá desfalcada pro próximo jogo!” Certamente ele me daria um joelhaço, não tenho dúvida... Ele diria também que não posso me preocupar com o que não está ao meu alcance, eu sei. Mas eu me preocupo com essas coisas, fazer o quê?! Paciência... Acho que vou ficar triste pelo resto da minha vida... até amanhã, pra ser mais exato...

Então, talvez essa seja a resposta pra minha tristeza: não ter conseguido entender as pessoas. Nenhuma delas eu entendi! Uns são felizes sem nada: sem família, emprego, amizades, saúde... outros, com família, excelente emprego, muitas amizades e perfeita saúde, conseguem ser tão idiotas... Quem poderia entender isso?! Acho que o caráter demasiado humano, do título do livro do Frederico, seja justamente esse: a incompreensibilidade de todos nós, de nossos atos, violências, assassinatos, guerras, fome, pobreza, miséria, problemas, tristeza...

Acho que estou me preocupando demais para o último dia da minha vida. Sou um cara prático, embora não pareça. O fato: amanhã estarei morto. O problema: estou triste. A “questã”: por quê?! Por que diabos estou triste se amanhã estarei morto?! ISSO é que não dá pra entender...

Bom, estão todos convidados: amanhã, 11h, na capela “K” do cemitério municipal. Lenços e cafés por minha conta. Quem for ao meu velório, peço que carimbem o ticket do estacionamento na saída, pois fiz um convênio com o cemitério para liberá-los também desse gasto. Só não me responsabilizo por quem beber cerveja (que também estarei oferecendo, para aqueles que se acham “moderninhos”) e tiver que assoprar o bafômetro numa blitz depois. O Cel. Mendes tá por aí, e vai pegar vocês!! Ele eu também nunca entendi direito... mas a essa altura do campeonato, não vou perder meu tempo com esse sujeito...

Claro que alguns canapés também estão incluídos no serviço de lenços. Não admitiria alguém passando fome enquanto eu estarei lá, deitado, morto, inanimado e sem fome, claro. Fome zero no meu velório!!

Já é quase amanhã, e estou chegando ao final dessa jornada. 66 anos (“sessenta e seis”, não tinha me dado conta do número!!) de inconsistência, tristeza, alegria, angústia, desespero, felicidade, desamparo, despreparo, doenças, curas, livros, filmes, pessoas, covardia... o tempo passa enquanto nem o vemos passar, e estamos sempre reclamando da sua falta. Gozado isso...

Bom, vou pedir uma pizza. A última, prometo! Hehe... Orgulho-me de, à beira da morte, conseguir manter meu sarcasmo!! Metade 6 queijos, metade calabresa gorda com ovo e cebola. Vou pedir uma de chocolate também. Mas pequena, pra não comer demais. Amanhã preciso entrar no terno preto que mandei fazer...

Vou pagar a pizza com cheque, pra ver como farão para descontá-lo. Na verdade, acho que não estarei mais aqui para ver, mas tentarei enxergar do lado de lá... não deixo herdeiros (sempre achei que filhos não significavam a possibilidade de nos perpetuarmos na vida... tanto é que meu mausoléu também já está pronto: isso sim é perpetuação!!), não deixo dívidas, não deixo saldo no banco... não deixo nada, pra dizer bem a verdade. Nem saudades eu deixo. Aliás, tudo isso pra uma meia-dúzia de pessoas que irão ao meu velório amanhã. Sim: o Afonso, do banco (eu era [ou sou, não sei mais] funcionário do Banco do Brasil), a Silvinha, da portaria do prédio (pessoa amarga, mas gente-fina), o Preto (gerente do banco), o Seu Isolde (segurança do banco), e a Dona Margarida, eterna síndica do prédio, que sempre reclamou da minha passividade nas reuniões de condomínio... Pelo menos eles terão um velório digno. Ou melhor: eu terei um velório digno. Eles desfrutarão dessa dignidade...

Chegou a pizza. Mais simbólica, impossível: tudo na minha vida sempre acabou em pizza. Nada como terminar a própria vida em pizza. Fui. Será a minha última janta. Não quero perder mais nem um segundo, pois já perdi todos os outros... Espero não encontrá-los em breve.

Adeus.

4 comentários:

Juriká disse...

No dia 5 de agosto, às 11h eu estava no velório. Realmente haviam lenços, café e canapés. Papéis, bons, claro. Café frio e canapés ruins.
Claro, a "questã"!? Ela é o que importa! A pergunta é o que importa: por quê a Tristeza irrompe, assim, tão incisiva?!
Seria o Partir sempre uma caricatura daquilo que realmente parte, partindo os corações, as vidas, as pessoas?
Ou, antes, a impossibilidade de ficar, sujeito às violências cotidianas?
Naquela encruzilhada de dois caminhos em que Camus coloca de um lado o suicídio e do outro a aceitação do absurdo como condição da vida, a cristalização da vida burocrática representa de alguma forma a morte para as surpresas do dia-a-dia...

Anônimo disse...

FALTEI ao velorio. Estava sem saco para toda aquela gente e aqueles salgadinhos ruins que tu encomendou.

Me disseram que tu ja estava meio esverdeado no final e as pessoas iam tomar o cafe fora da capela.

Para quando sai as tuas memorias? e o EMPLASTO?

Enfim (da serie: "Comentarios esquizofrenicos para posts birutas").

Moysés Neto disse...

"Enfim (da serie: "Comentarios esquizofrenicos para posts birutas")."

GD sempre se supera.

Anônimo disse...

Uma pena que não fui no velório. Devias ter mandado um email avisando já q estava tudo programado. Falhaste, mas me deste uma idéia: no meu velório
servirei pizza, com certeza.

Me abri pra esse texto!