sábado, 18 de julho de 2009

O Não-Lugar da Minha Vida IV


Para uma Amiga.


Apesar daquilo que nos contam, João e Maria nunca foram irmãos. Na verdade, sequer se conheciam, até que, num dia bastante esquisito, atraídos por um discurso fascinante que os conduziu para um mundo de fantasias, acabaram se encontrando: João, um pouco mais velho, falava bastante; Maria, mais nova que ele (e naturalmente mais inteligente), mais ouvia do que falava. Como uma luz que penetra a escuridão – ou como uma escuridão que penetra a luz – seus diálogos tomaram formas e proporções antes inimagináveis: apesar de não se conhecerem, uma harmonização de idéias e pensamentos foi mais forte do que eles, e ali, naquele momento, estava instituída a dúvida, a incerteza, a possibilidade de transgressão e, portanto, a beleza da vida: naquele instante, nasceram de novo.

Em meio a um mundo pleno de mentiras e de pura alucinação, na cauda da turbulenta situação em que se encontravam, houve então algo que lhes deu força para ir atrás do desconhecido, de uma possibilidade – mesmo que remota – de saída dessa virulenta armadilha sem solução em que se perceberam: acuados pela compressão do espaço e pela violência do tempo, pensaram que pouco poderiam fazer, mesmo que um desejo maior lhes esmagasse vertiginosamente. Uma única oportunidade de vida lhes era possível, e não a desperdiçaram: João nunca escondeu a sua intenção, mas foi Maria quem deu o passo decisivo. Porém, ao contrário do que imaginavam, sua tentativa não foi bem sucedida: ao passo que Maria temia pelo que não sabia (e pelo que sabia que estaria em jogo), João temia por coisas outras, e ambos tiveram suas expectativas roubadas pela imposição da velocidade em que viviam: ela, pelo insucesso da tentativa; ele, pela impossibilidade de ter agido de outra forma. Dalí em diante, deixaram-se consumir pelo discurso que se autoproclamava Salvador e que, naqueles primeiros momentos, mostrava-se mesmo fascinante, mas que, passado algum tempo, exibiu toda a sua perversão e a sua leviandade. Envolvidos pela facilidade da Razão e pela comodidade do Mesmo, optaram por ignorar o que jamais havia sido dito: era mais fácil assim, não havia motivo forte o suficiente para fazer-lhes agir de outro modo. Nem mesmo o amor que parecia surgir nas suas vidas parecia-lhes forte o bastante para enfrentar tudo aquilo que lhes era imposto. Como memórias desaparecidas, como histórias que não cansamos de escutar, como num sonho que não mais quer acabar, perceberam a ingenuidade da tentativa de vida e se deixaram engolir pelo fluxo acelerado da situação e deixaram de pensar em algo que, mesmo que remotamente, pudesse concretizar aquilo com que sempre sonharam: acomodados e conformados, seguiram seus diálogos, mas sempre a uma certa distância e precavidos para que nunca mais tentassem algo que não fosse oficialmente aceito, pois isso poderia lhes trazer sérios problemas – incluindo eventuais perseguições, como sempre acontece com quem ousa ser minimamente diferente.

Completamente sugados pelo tempo e pela igualdade, João e Maria seguiram suas vidas e, cada um à sua forma, viveram o que foram obrigados a viver. Nunca, porém, esqueceram daquele dia, em que ousaram concretizar os seus desejos, mas que, por pura falta de sensibilidade para o que ali havia de errado, acabou por nunca se concretizar. A não-percepção de tudo o que os envolveu fez com que cada um sentisse a situação apenas ao seu próprio modo, e foi justamente a ausência absoluta de comunicação – que, em princípio, era exatamente o ponto mais forte entre eles – que determinou, com toda a sua força temporal, a impossibilidade de concretização de seus sonhos.

Entretanto, sem o perceber, João e Maria foram condenados à pena perpétua de jamais conseguir deixar de sonhar...

6 comentários:

Anônimo disse...

João,
quem sabe já havia beleza na minha vida antes de te conhecer, mas foi só depois de ti que passei a enxergar.
Ass., Maria.

Moysés Neto disse...

O grande erro é que João e Maria continuam errando: o instante continua se repetindo sem cessar, até a morte.

O dia do juízo final é todos os dias.

Pandolfo disse...

"Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país"

G.D. disse...

Artista: Los Hermanos

Musica: "Cancao de Botas Batidas"

Disco: "Ventura"

G.D. disse...

"CONVERSA" de botas batidas, na real, mas igual, deu pra entender.

Clarissa de Baumont disse...

Intensamente comovente porque percebe a densidade sutil envolvendo os instantes dos seres presos ao emaranhado indefinível da vida e seus silêncios, e suas não-percepções, e a força temporal e as impossibilidades e os sonhos perpétuos...