sábado, 27 de junho de 2009

Josué e os Direitos Fundamentais (I)

O que a mim é difícil entender, hoje, é o discurso dos direitos fundamentais. Ok, não discordo que seja importantíssimo discuti-los, aprimorá-los, dar-lhes visibilidade, etc. Entretanto, desde que Bobbio falou que não era mais necessário fundamentá-los, mas protegê-los (ver “A Era dos Direitos”, p. 25), penso que, antes mesmo disso, uma outra questão lhes é anterior: alguma vez os direitos fundamentais foram, efetivamente, colocados em prática para que possam ser protegidos?

A resposta, penso, é negativa. E não é necessário ir muito longe para pensar profundamente sobre isso: basta ir até um presídio qualquer para constatar isso. Ou então, basta acompanhar o cotidiano dos moradores e meninos de rua de Porto Alegre, por exemplo. Os exemplos poderiam se estender por uma boa quantidade de linhas, mas acho que é desnecessário, tamanha a sua evidência.

Até aqui, nada de novo. Ninguém nasceu ontem. Nem o Sarney.

Continuo, portanto, a questionar: por que será que as pessoas pensam que os direitos fundamentais são (ou seriam) aplicados? A questão, aqui, pode facilmente ser reformulada: QUEM pensa que eles são (ou poderiam ser) aplicados? Os donos sagrados do pensamento ocidental, que, do alto de suas amorosas Declarações de direitos humanos, acham que eles realmente valem para alguma coisa? Os lunáticos acadêmicos, que, diante de ilustres espelhos, bolsas e perucas, não se cansam de responder alucinadamente que é justamente isso que fundamenta a democracia em que vivem? Ou seriam os atores jurídicos, que continuam a repetir, em decisões, pareceres e discursos, que devemos continuar a luta pelos direitos humanos?!

“Luta? Que luta?!”, perguntaria Josué, morador da Av. Ipiranga, esquina com a Vicente, s/n. Ponte não tem número. A luta dele é uma só: viver. Ou melhor: sobreviver. Se permitirem, ele até sobrevive. Não tem sido fácil. Pedir esmola na esquina não rende moedas ou drogas: rende surras. De quem? Perguntem a ele, e a resposta será exatamente essa que estão imaginando.

Alguém, contudo, nega essa “realidade”. Ao continuar a discussão açucarada dos direitos fundamentais como se eles efetivamente fossem observados, é negado justamente aquilo que os vencedores querem esconder: a exterminação humana do Holocausto continua, porém sob outros aspectos. Alguém ousa negar isso? Os lunáticos? Os donos do pensamento? Eles talvez. Josué não. Não há mais câmaras de gás, mas ainda há câmaras de gás; já não há mais campos de concentração, mas ainda há campos de concentração; já não há mais perseguição étnica, mas ainda há perseguição étnica; já não há mais busca por ordem pública, mas ainda há busca por ordem pública.

Não vou e nem pretendo comparar o Holocausto com o que vivemos. Não poderia fazer isso. Seria leviano demais. Josué talvez pudesse comparar. Eu, não.

Walter Benjamin, numa das sacadas mais perniciosas da história, lançou uma tese (a 3ª, sobre o conceito de História) que corta as raízes de qualquer direito fundamental e expõe os nervos (pra usar uma expressão do Timm) da estrutura racionalizada das nossas bondosas ciências:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final.

Zygmunt Bauman, por sua vez, refere que “por trás da aliança resiste o moderno Estado ‘jardineiro’, que vê a sociedade sob seu comando como objeto de planejamento, cultivo e extirpação de ervas daninhas.” (in Modernidade e Holocausto, p. 31)

Extirpando aqueles que podem ser considerados “pequenos”, continuamos nosso discurso e nossa “luta diária” em prol dos direitos fundamentais. Vamos em frente, em busca de algo que ainda não foi encontrado, mas que, graças a nós – sábios, grandes, mestres e doutores – um dia será, e poderemos, enfim, dizer: “Enfim, eis o que tanto buscávamos.”

Nesse dia, enquanto alguns comemoram, outros estarão a relatar a batalha, reportar os detalhes, narrar os heróis e dar nome às homenagens. Estátuas, monumentos, troféus e boinas serão ofertadas; tratados serão redigidos; acordos serão celebrados; promessas serão formuladas; as dores serão reduzidas. Sempre e sempre, em nome de uma humanidade.

Nesse mesmo dia, Josué continuará a perguntar com quantos paus se faz uma canoa.

(continua)


15 comentários:

Ricardo Timm de Souza disse...

"Nessa prisão ao ar livre em que o mundo está se transformando, já nem importa mais o que depende do quê, pois tudo se tornou uno. Todos os fenômenos enrijecem-se em insígnias da dominação absoluta do que existe. Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas que pede o silêncio."
T. ADORNO

Unknown disse...

Por isso entendo fundamental a imersão na teoria crítica dos direitos humanos, fomentada pela escola de Sevilha. Acho que pode trazer importantes questões para o debate.

Alexandre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Juriká disse...

Belo texto cara! Gostei muito. Abração

disse...

Se a existência dos direitos humanos é uma questão de virtualidade (já que faticamente a inexistência é óbvia) e os direitos humanos são o fundamento da democracia, então podemos concluir que quanto mais defendermos a não existência fática dos direitos humanos (afirmando sua existência virtual)mais estaremos lutando pela democracia. Portanto quanto mais falarmos que os direitos fundamentais não existem, mais estaremos sendo anti-democráticos, porque é preciso protegê-los. Quer dizer, isso não é um argumento, isso é uma coação. Ou tu confirma a mentira ou estás legitimando o fim dos direitos fundamentais. Como se, de um ponto de vista fático, defender o fim do que não existe tivesse consequências! Eu não entendo nada mesmo. Agora, não é possível afirmar, como salientaste, que existe uma maior ou menor violação hoje, mas ela existe. Assim como existe também o repeito pelos direitos humanos. Só que essa NÃO É uma questão de avanço civilizatório ou constitucional, porque o direito NÃO É nem o causador nem a consequência da cultura. O direito é muito menor que a cultura. Diz uma coisa, esse teu post não é uma volta aquela discussão que tivemos no grupo sobre eficácia do garantismo? Não estás sendo agora MUITO MAIS radical do que naquele momento (onde tu defendeu o discurso de contenção jurídica da violência estatal)? Pergunto porque a minha opinião foi igual a tua nos dois momentos e me parece que agora estamos sendo o CÚMULO da contradição.

Moysés Neto disse...

Os defensores dos direitos fundamentais não conseguem explicar por que esses direitos não se aplicam por uma razão simples: são cúmplices da matança.

Anônimo disse...

Fantásticas as suas observações. Estamos encurralados: a defesa dos direitos fundamentais acaba por auxiliar a manutenção do mesmo estado agressivo. Por outro lado, o desacreditar de forma absoluta onde nos coloca? Josué ficará na mesma. Como nos aproximar?Como escapar?. É algo possível ou novamente caímos em idealizações? Apontar os contrastes e travar as micro batalhas nos basta? Adorei seu texto.Abraço, bizzotto

Achutti disse...

Zé: eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Toca Raul!!
Na real, não me importo nem um pouco em ser contraditório de vez em quando, acho até saudável isso...
Creio que, em alguns momentos, é absolutamente necessário lutar MUITO pela contenção do poder punitivo, sem dúvida! Continuo pensando isso, mas não vejo como contraditório afirmar, simultaneamente, que os direitos fundamentais não são aplicados. Apenas não tenho mais fígado pra ficar discutindo direitos humanos/fundamentais COMO SE eles fossem aplicados, COMO SE eles fossem solução, COMO SE...
Acho que, quanto a isso, a Teoria Crítica tá mesmo pedindo pra ser trabalhada profundamente por aqui. O que importa é ASSUMIR essa questão da INaplicabilidade dos direitos humanos/fundamentais para, somente então, iniciar a discussão.
Acho que o Pan manda mto bem quando diz que tudo não passa de um continuísmo disfarçado de fascismo, pq o tecido que não é abarcado pelo discurso DEVE (e MUITO) ser pensado, sob pena de um... continuísmo disfarçado de fascismo. É esse ciclo, que NUNCA entra em debate, que DEVE ser debatido! O Moysés tb tem razão nesse sentido: pensar em nós mesmos como cúmplices dói, e dói mais ainda reconhecer isso...

Bizzotto, legal a tua "presença" por aqui! Gostei dos teus questionamentos, e também não sei bem pra que lado ir, tô bem no meio daquele velho ditado do "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come...". As micro batalhas são fundamentais, e devemos estar preparados pra elas - mas acho que não só devemos ir além do que temos hoje como penso que a própria concepção de democracia já está defasada. Temos que pensar em algo muito além disso, a começar pela própria engrenagem penal como um todo.
O problema é quando aparecem "alguns" mostrando esse "algo muito além" e dizendo que se trata mesmo de algo "muito melhor" quando, na verdade, é um retorno a uma ditadura ou uma outra democracia de fachada, como a nossa. Por essas e outras acho que o Timm tem razão quando diz que "não podemos falhar, pq senão vem alguém no nosso lugar que NÃO FALHA, e aí a coisa vai feder (ainda mais)."

Nisso, as lições do Zaffaroni são muito importantes: a leitura que faço dele é que o cara só não é um abolicionista pq tem receio do que pode vir por aí...

Um de meus maiores dilemas hoje é: como evitar que a restaurativa possa se transformar em uma máquina potencializadora da criminalização? E caso isso realmente venha a ocorrer, será que é mesmo possível evitar esse efeito ou teremos que correr esse risco?! As pesquisas indicam que, a curto prazo, isso não ocorre - mas a longo prazo ainda não vi nenhuma pesquisa trabalhar isso...

Ainda bem que o doutorado dura 4 anos!!

Abraços!

G.D. disse...

Pergunta RASTEIRA do dia: o criticismo (sevilliano ou agambeniaco) nao termina em uma tentativa louca de EFETIVAR alguma coisa? Em outros termos: trata-se da MESMA luta, nas versoes com ou sem ingenuidade "bondosa". Duvido que tu termine, por mais 'alteridade' que haja, discordando da maioria dos 'valores ocidentalmente impostos' (Ruth) que existem quando se fala dm DDHH.

Ps: sem duvida - crer que os DF "EXISTEM" e precisam APENAS ser protegidos= balela AFU

disse...

Tá ligado que o Divan entra em todos os blogues ao mesmo tempo e não tem UM em que ele não faça bolinho? Certo que no colégio o cara era o terror das reuniões dançantes.

Marcelo Mayora disse...

Acho que essa questão é muito bem resolvida pelo Zaffa, que escreveu o "em busca" lá em 1989. O sistema penal é ilegítimo, mas existe. Como o sistema penal existe, para além de qualquer teorização, e como, alguém vai ocupar o espaço de poder dos penalistas, que ocupem aquele que sabem que o sistema penal é ilegítimo e estejam preocupados em construir diques...

Anônimo disse...

...É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua cabeça, animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social...

Achutti disse...

Acho que é isso mesmo, Divan... dificilmente teria algo "melhor" pra se pensar, e a busca me parece essa mesmo. Entretanto, às vezes ela ofusca aquilo que palpita pra grande maioria por aí, que é justamente a inexistência completa desses direitos humanos/fundamentais, e é esse ofuscamento que devemos evitar, sob pena de não avançarmos nunca no debate. Admitir isso PODE ser um primeiro passo pra superar a inutilidade de uma discussão esquizofrênica, mas certo que é tão-somente isso: o primeiro passo do que deverá vir em seguida.
A "minha alteridade" me prende aos direitos humanos, mas me impede de deixar de pensar onde eles não só não chegam, mas também onde eles chegam "ao contrário".

Os diques são absolutamente necessários, mas só abrangem aqueles que estão, HOJE, envolvidos com o sistema. Os demais ficam de fora, até pq não podemos deixar de reconhecer que o sistema não é o único lugar onde os DDHH devem ser observados. O Zaffa é O CARA em se tratando de sistema penal, mas a minha preocupação é pensar em algo FORA desse sistema penal. Ou seja: ele me ajuda MUITO até certo ponto; do 'ponto' em diante, preciso de algo mais que não encontro nele.

Ricardo Timm de Souza disse...

Achutti: continua procurando esse algo mais e encontrarás. Talvez esteja mais perto do que parece.

Achutti disse...

Continuarei, Timm! Prometo não cancelar a matrícula!! :)