domingo, 13 de dezembro de 2009

O direito penal e as vítimas

Ainda presos ao mito do contrato social e da dicotomia civilização vs. barbárie, muitos penalistas tremem só de ouvir a palavra "vítima". É interessante falar de vítimas em momentos em que tudo o que se espera é que não se fale dela, dado o desconforto que essa "questão" causa em alguns. Não só permanecem presos a essa construção histórica (a de que sem o contrato social retornaríamos à barbárie e a uma espécie de derramamento de sangue generalizado) como também continuam a acreditar que a vítima, se reincorporada ao processo penal, somente buscará a vingança e nada mais. Nada mais ingênuo na minha opinião, e tenho pelo menos duas simples razões para isso: (a) uma, do ponto de vista normativo, que permite que a vítima (ofendido) seja titular de uma ação penal (no caso das privadas); (b) outra, do ponto de vista empírico, que me faz pensar que reduzir a vontade das vítimas a uma espécie de vingança soa como verdadeiramente estapafúrdio.
No mais das vezes, a participação da vítima se resume a nada, já que o ofendido em um delito foi a lei, ou seja, o Estado. Com a apropriação do conflito por pessoas (Christie) que nada tem a ver com a história (delegado, promotor, advogado, juiz, etc.), passa-se a defender a ideia de que se o Estado é a  verdadeira vítima, então por qual motivo deve-se chamar a vítima de carne e osso? Nada de pessoas, por favor: no máximo, um papel e um tipo penal violado. Nada mais.
E nada mais MESMO: com o reducionismo das discussões sobre direito penal e processo penal a meras reformas legislativas, deixa-se de lado toda e qualquer possibilidade de pensar em algo que possa, pelo menos, devolver o conflito a quem mais interessa, ou seja, aos envolvidos. E aqui não se deve pensar novamente em termos reducionistas, dando voz apenas à vítima: deve-se pensar também nos acusados/ofensores, nos direta e indiretamente envolvidos (família, amigos, etc.) e em quem mais uma situação problemática (Hulsman) possa vir a interessar.
Resumindo: fico pasmo quando percebo que a maioria dos congressos, seminários e afins se resumem a debater reformas penais e processuais penais, quando o furo é, evidentemente, bem mais embaixo. Ok, não espero muita coisa dos advogados e demais atores jurídicos, mas poderia (deveria?) esperar muito mais de uma certa academia... Não estou querendo com isso dizer que se deve discutir apenas propostas alternativas ao sistema penal como se elas fossem solucionar os males do mundo, obviamente não é essa a questão: se o sistema penal existe e produz tantos danos, evidentemente que o debate sobre as reformas é importantíssimo - mas é preciso lembrar que hoje, 2009 - quase 2010, ainda estamos com os pés fincados em discussões alucinadas e alucinatórias (terrível Pan).
Espero, em 2010, poder descobrir discussões em que os temas sejam coisas reais, e não apenas discursos teóricos vazios que nada fazem senão tentar (re)construir castelos encantados em areias movediças...

9 comentários:

Unknown disse...

o discurso penal, centrado em si mesmo, excluiu da cena os atores envolvidos no conflito. ou seja, tanto réus como vítimas passam a ser meras desculpas para a produção de outra coisa, bem distante da 'pacificação e resolução do conflito'. coisa esta que é o próprio sistema punitivo.

Raffaella disse...

"El Castillo" del sistema penal y sus penalistas miopes.

Caio Cezar disse...

Muito bom, Achutti. Interesso-me muito por esta problemática da vítima e o PROCESSO penal. Aliás, o livro da Flaviane de Magalhães Barros, prefaciado pelo Jacinto, está aqui ao meu lado para começar a ser lido.

Quero fazer uma pergunta assumidamente 'grotesca'. E se a vítima, convocada para a 'sessão restaurativa' ou para 'discutir' a situação-problema, nega radicalmente qualquer hipótese conciliatória (o que não é/será muito raro, acredito, em fatos que esbarram-se nos limites do tolerável (?)) e EXIGE a punição do culpado com todos os requintes de crueldade que este sistema podre oferece?

Enfim, quero, como você, descobrir situação em que os temas sejam coisas reais... Mas tenho medo de estar - talvez inconscientemente - negando a selva que vivemos.

São apenas divagações... Ao menos ainda não temos um castelo, né?

Abraço.

Caio Cezar disse...

(...) descobrir DISCUSSÕES (...)

Achutti disse...

Caio, tua pergunta não é grotesca. Nessas situações, quando a vítima se nega a participar da JR (falo especificamente de JR por desconhecer os demais modelos conciliatórios), o processo retorna ao sistema criminal tradicional. A vítima não tem poder para "exigir" nada, e muito menos com requintes de crueldade: com o retorno do processo ao sistema tradicional, tudo correrá da forma como conhecemos. Há, para tudo, um limite, e o limite do próprio acordo deve ser estabelecido. A Raffaella, se não me engano, fala que os direitos humanos são o limite, e que os acordos que os violem podem ser invalidados.
Muita coisa para pensarmos ainda, mas acho que "el castillo" está aí sim, infelizmente, e às vezes ele consegue ser um pouco (um muito?) pior do que o dogmático...
Abraço,
Achutti.

Unknown disse...

O Limite dos Direitos humanos é estabelecido onde? por que(m)? Por acaso seria uma Lei? se considerarmos os limites "humanos" que o direito propoe, caímos na mesma lógica de exceção da qual estamos inseridos e, portanto, o limite é absolutamente violável. epetiremos a tautologia desta Totalidade instituída.
Não sei se entendi bem, apenas uma dúvida...

Raffaella disse...

Na verdade, quem fala dos direitos humanos como limite não sou eu, mas sim o Braithwaite, eu só refiro! Obviamente, esse discurso é limitado, como todos o são.
Na JR os limites são internos (respeito aos valores e princípios restaurativos - que não possuem somente o tradicional viés abstrato e formalísta) e externos (por meio do controle dos acordos pelo judiciário - o que nem sempre é bom, pois o judiciário costuma ser mais punitivo do que as vítimas!). Mas sem dúvida, Quinho, todos estes discursos limitadores seguem tendo limitações e algumas vezes, também são autoreferenciais...
Contudo, me parece que o discurso da JR é menos violento (do que o discurso do Castillo), na medida que não é um discurso que não está preocupado com o que acontece na prática, pelo contrário, é produzido em conjunto com ela, pois a JR se constrói a partir de cada experiência (singular) de encontro...e ai talvez esteja sua grande vantagem e diferença...
Mas como bem disse o Achutti, ainda temos muita coisa para pensar...

Achutti disse...

Pois é, também concordo que corremos esse risco, mas é necessário estabelecer um limite, e o que temos hoje à disposição é esse. Violável? Sem dúvida, como toda e qualquer lei - mas algo deve ocupar esse lugar...
O problema me parece o mesmo dos tais direitos fundamentais (no discurso há vida, na prática há morte), mas ainda assim eles são necessários, por mais paradoxal que possa parecer... se tivesse algo "melhor" pra usar, blz, mas esse algo ainda não existe...

Achutti disse...

Ah, Raffa: tá, não foi tu que "inventou" essa ideia, foi o John, blz, mas eu tava com preguiça de pegar o teu livro e procurar lá... hehe