segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A Crise e o Tempo Crítico

"Acostumamo-nos a conceber a noção de crise como a efetivação ou ameaça de alguma catástrofe maior ou menor; é assim que se lê normalmente este termo no dia-a-dia – e não são poucos os jornais que ganham com este medo, explícito ou sub-reptício, que a palavra “crise”, bombardeada diariamente em todos os níveis de comunicação, acende em nossos espíritos. Pois perceber que algo está em crise significa, no senso comum, ter de esperar dali algo de negativo, de decadente, de destruidor. O que pode desejar, quem “está em crise”, senão, exatamente, sair da crise, sobreviver a ela, superar os obstáculos quase intransponíveis que ela propõe?

Esta leitura é, porém, apenas uma dimensão bastante parcial da realidade. Se formos às origens etimológicas deste termo – a krisis – poderemos perceber uma grande riqueza escamoteada pelas tonalidades alarmistas do dia-a-dia. Pois esta palavra tão assustadora provém do termo grego para “julgar”, romper com, avaliar, apreciar desde uma distância prudente. E aqui temos uma das chaves de compreensão do sentido real de uma crise verdadeira: ela coloca em xeque o estabelecido, se distancia da obviedade, desacostuma-se das razões tautológicas que se autodefinem e se auto-sustentam – ao mesmo tempo em que ajuda, deste modo, a antever e preparar um futuro melhor. Em outros termos, a crise é, neste sentido, exatamente a possibilidade de poder superar o próprio status de crise, ou as condições que levaram a ela. Habita em sua profundidade uma dimensão de abertura, de profunda positividade a ser fecundamente explorada.

À passagem da situação aparentemente desesperançada de crise segue-se, portanto, a possibilidade da descoberta de sua positivação, à qual chamamos de crítica: outro termo maltratado pela tradição. Falamos normalmente, ao criticarmos algo ou alguém, em crítica “construtiva”, tomando mil cuidados para não melindrar suscetibilidades – como se o próprio exercício da crítica não fosse, em si, salutar e renovador, ao significar a superação da apatia negativista de um estado de crise. Neste sentido, crítica “destrutiva” não seria senão destruição pura e simples ou totalização violenta do real.

A constatação destes dados nos dá oportunidade de explicitar o que entendemos normalmente por “filosofia”. À transmutação da crise em crítica temos chamado precisamente de filosofia: é quando o óbvio, em todos os níveis, perde sua naturalidade, sua rigidez opaca, sua neutralidade; é quando se percebe que o diferente pode efetivamente existir. Filosofia é crise, crise congênita à humanidade (...), uma grande crise que se positiva, em um esforço extremamente árduo, na construção da crítica ao longo do tempo ou, o que dá no mesmo, na construção-descoberta do sentido.

(...) O que nos interessa, aqui, é perceber tal fato com relação a este conceito: crise. Quando a crise é suficientemente forte para potencializar uma completa rearticulação do sentido do real, ao transformar-se em uma crítica ampla, profunda e conseqüente, esta é muitas vezes negativizada pelo medo da transformação radical da compreensão do que seja o mundo – e assim se incorpora ao linguajar comum, aureolada da obviedade à qual exatamente, em sua origem, tinha vindo questionar."

(SOUZA, Ricardo Timm de. Em Torno à Diferença: aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 12-13)

3 comentários:

Faira Beck...é um jeito de causar efeito disse...

Acredito que o 'problema' está no medo de desafiar a si mesmo! Muitos atribuem a crise seus fracassos e grande parte da população faz isto!
Eles esperam...e esperam!
Aguardam alguma solução...alguém tem que fazer alguma coisa, mas tiram o poder de mudança, de agir de si e colocam em terceiros!
Respeitam e priorizam as penúrias, os problemas, ao invés das soluções!
Acredito que a crise é de incompetência...

Achutti disse...

hehe... não sei se pensaria a questão desse modo, Faira, mas em todo caso, é uma das possibilidades...

G.D. disse...

"...À transmutação da crise em crítica temos chamado precisamente de filosofia..."

perfeito!