domingo, 7 de setembro de 2008

O Medo

"Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas;
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
Vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
Este célebre sentimento,
E o amor faltou: chovia,
Ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
Nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
Meu companheiro moreno.
De nos, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
Vem ó terror das estradas,
Susto na noite, receio
De águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
Duros tijolos de medo,
Medrosos caules, repuxos,
Ruas só de medo, e calma.

E com asas de prudência
Com resplendores covardes,
Atingiremos o cimo
De nossa cauta subida.

O medo com sua física,
Tanto produz: carcereiros,
Edifícios, escritores,
Este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
Recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
Dançando o baile do medo."

Carlos Drummond de Andrade

In: A rosa do povo. 39ª ed. Record: RJ/SP, 2008, p. 35-37.

3 comentários:

disse...

O foda é quando deixamos de ver o medo em sua naturalidade pra SÓ ver o medo na sua totalidade. Como se o fato de não ter como abarcar todo o medo na linguagem nos levasse a colocar o medo em toda linguagem.

Anônimo disse...

Isso DE FATO me faz olhar com outros olhos para esse sujeito do qual INSISTO em nao gostar (C.D.A.). SHOCK!

Unknown disse...

Lembrei da Regina Duarte sentenciando: eu tenho medo.