O que a mim é difícil entender, hoje, é o discurso dos direitos fundamentais. Ok, não discordo que seja importantíssimo discuti-los, aprimorá-los, dar-lhes visibilidade, etc. Entretanto, desde que Bobbio falou que não era mais necessário fundamentá-los, mas protegê-los (ver “A Era dos Direitos”, p. 25), penso que, antes mesmo disso, uma outra questão lhes é anterior: alguma vez os direitos fundamentais foram, efetivamente, colocados em prática para que possam ser protegidos?
A resposta, penso, é negativa. E não é necessário ir muito longe para pensar profundamente sobre isso: basta ir até um presídio qualquer para constatar isso. Ou então, basta acompanhar o cotidiano dos moradores e meninos de rua de Porto Alegre, por exemplo. Os exemplos poderiam se estender por uma boa quantidade de linhas, mas acho que é desnecessário, tamanha a sua evidência.
Até aqui, nada de novo. Ninguém nasceu ontem. Nem o Sarney.
Continuo, portanto, a questionar: por que será que as pessoas pensam que os direitos fundamentais são (ou seriam) aplicados? A questão, aqui, pode facilmente ser reformulada: QUEM pensa que eles são (ou poderiam ser) aplicados? Os donos sagrados do pensamento ocidental, que, do alto de suas amorosas Declarações de direitos humanos, acham que eles realmente valem para alguma coisa? Os lunáticos acadêmicos, que, diante de ilustres espelhos, bolsas e perucas, não se cansam de responder alucinadamente que é justamente isso que fundamenta a democracia em que vivem? Ou seriam os atores jurídicos, que continuam a repetir, em decisões, pareceres e discursos, que devemos continuar a luta pelos direitos humanos?!
“Luta? Que luta?!”, perguntaria Josué, morador da Av. Ipiranga, esquina com a Vicente, s/n. Ponte não tem número. A luta dele é uma só: viver. Ou melhor: sobreviver. Se permitirem, ele até sobrevive. Não tem sido fácil. Pedir esmola na esquina não rende moedas ou drogas: rende surras. De quem? Perguntem a ele, e a resposta será exatamente essa que estão imaginando.
Alguém, contudo, nega essa “realidade”. Ao continuar a discussão açucarada dos direitos fundamentais como se eles efetivamente fossem observados, é negado justamente aquilo que os vencedores querem esconder: a exterminação humana do Holocausto continua, porém sob outros aspectos. Alguém ousa negar isso? Os lunáticos? Os donos do pensamento? Eles talvez. Josué não. Não há mais câmaras de gás, mas ainda há câmaras de gás; já não há mais campos de concentração, mas ainda há campos de concentração; já não há mais perseguição étnica, mas ainda há perseguição étnica; já não há mais busca por ordem pública, mas ainda há busca por ordem pública.
Não vou e nem pretendo comparar o Holocausto com o que vivemos. Não poderia fazer isso. Seria leviano demais. Josué talvez pudesse comparar. Eu, não.
Walter Benjamin, numa das sacadas mais perniciosas da história, lançou uma tese (a 3ª, sobre o conceito de História) que corta as raízes de qualquer direito fundamental e expõe os nervos (pra usar uma expressão do Timm) da estrutura racionalizada das nossas bondosas ciências:
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final.
Zygmunt Bauman, por sua vez, refere que “por trás da aliança resiste o moderno Estado ‘jardineiro’, que vê a sociedade sob seu comando como objeto de planejamento, cultivo e extirpação de ervas daninhas.” (in Modernidade e Holocausto, p. 31)
Extirpando aqueles que podem ser considerados “pequenos”, continuamos nosso discurso e nossa “luta diária” em prol dos direitos fundamentais. Vamos em frente, em busca de algo que ainda não foi encontrado, mas que, graças a nós – sábios, grandes, mestres e doutores – um dia será, e poderemos, enfim, dizer: “Enfim, eis aí o que tanto buscávamos.”
Nesse dia, enquanto alguns comemoram, outros estarão a relatar a batalha, reportar os detalhes, narrar os heróis e dar nome às homenagens. Estátuas, monumentos, troféus e boinas serão ofertadas; tratados serão redigidos; acordos serão celebrados; promessas serão formuladas; as dores serão reduzidas. Sempre e sempre, em nome de uma humanidade.
Nesse mesmo dia, Josué continuará a perguntar com quantos paus se faz uma canoa.
(continua)