domingo, 24 de agosto de 2008

Sobre a (contra)nostalgia do futuro

Por mais que negue, não consigo deixar de imaginar como seriam as coisas e o mundo caso tudo acontecesse como eu gostaria. Certamente seria um tédio infinito e, provavelmente, eu estaria fadado ao suicídio. Mas, mesmo admitindo racionalmente essa possibilidade, é inegável que sempre fico a imaginar “como seria a (minha) vida se...”.

Dia desses fiquei pensando: como seriam as minhas aulas se todos os meus alunos lessem o que recomendo? E mais: se lessem essas indicações de forma crítica? E como seria o ensino jurídico se todos os alunos fossem críticos? Será que existiria ensino jurídico? Começo a pensar que não, pois todos perceberiam a limitação do próprio discurso jurídico e procurariam algo muito melhor para fazer de suas vidas a permanecer acreditando em duendes...

Como seria o amanhã caso a miséria acabasse, a paz reinasse, os preconceitos sumissem e as dores se apagassem? Como seria o mundo se a vida fosse só morango com leite condensado? Sim, seria uma vida gorda, mas estou falando metaforicamente... Como seriam os churrascos se todos se dessem conta de que a costela é, disparado, a melhor carne, e a picanha é só um meio de enganar os outros para cobrar mais caro por uma carne apenas mais macia e não tão saborosa?

Como seria – e aí também podemos pensar o contrário – o mundo se uma catástrofe mundial ocorresse? A espécie humana sobreviveria? O que viria então? O que existe além dos limites do universo? Estamira acha que há um transbordamento do humano – ou do inumano? – quando ele consegue superar os limites da racionalidade “comum”, quando ele reconhece a sua própria maldade mesmo inserido num contexto em que pensa que está sempre certo. Até a sua maldade estaria certa, portanto. Às vezes acho que ela tá mesmo certa...

Estou começando a pensar que o termo “nostalgia” não necessariamente se refere apenas ao passado: acho que, com igual propriedade, ele pode ser empregado quando pensamos e falamos do futuro: uma vez que estamos sempre pautando nossas ações para a melhora do futuro mas, ao mesmo tempo, vamos constatando que “os bons tempos” vão ficando para trás, a nossa imaginação se sobrepõe à realidade e ficamos a divagar: “que saudades daqueles bons tempos... se você não tivesse feito o que fez, tudo seria diferente hoje e melhor ainda seria amanhã...”.

Eis, então, a ambigüidade da nostalgia: ao mesmo tempo que nos faz pensar no que de bom ficou no passado, também nos faz pensar o quão bom seria o futuro. Como sabemos, é impossível reviver determinado momento exatamente da maneira como foi vivido ontem. Entretanto, por estar, no momento, bastante próximo de Adorno (por influência decisiva do amigo e professor Ricardo Timm de Souza, registre-se) e de alguns pensadores da Escola de Frankfurt, uma frase dele, em particular, chamou muito a minha atenção (mesmo admitindo a possibilidade de uma equivocada interpretação, uma vez que não li o texto em que ele a afirma): “aquilo que se realiza na vida não é muito mais do que a tentativa de recuperar a infância.” (In: Sobre a pergunta: o que é alemão?, p. 130. Apud SELIGMANN-SILVA, Márcio. Adorno. São Paulo: Publifolha, 2003, p. 19)

Ou seja: estamos sempre buscando atingir a nostalgia no futuro, mesmo sabendo que nunca entraremos duas vezes no mesmo rio... Ao mesmo tempo que admitimos a impossibilidade do reviver, continuamos essa busca incessante pelo reviver agradável, que nos remete a tempos memoriais e que, por isso mesmo, são irrepetíveis: tempos nostálgicos, portanto. Saudade, tristeza, melancolia: uma fusão de sentimentos em que nada faz muito sentido... E tal busca continua, apesar da clareza com que sabemos isso, a orientar nossos passos e a atormentar nossas idéias...

Talvez a briga com a nostalgia seja uma estupidez, ou até uma tentativa de briga com a nossa própria memória – mas, em alguns aspectos da vida, acho que é uma maneira razoável para partirmos em busca do desconhecido, do ainda-não-vivido...

García Márquez é um gênio, e uma frase dele tem me acompanhado há alguns anos e nos mais diversos momentos: “... a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las.” (In: Cem Anos de Solidão. São Paulo: Record, 1997, p. 238). Talvez aqui, dentro do que propomos (sem desmerecer o mestre colombiano, longe disso!), a gente possa ir além, para dizer que, antes de procurar as coisas perdidas, devemos nos permitir procurar também o desconhecido. O conhecido está aí, em algum lugar (do passado, perdido num canto da memória, ou nos entulhos dos nossos depósitos), mas o desconhecido não: o desconhecido simplesmente não está em nenhum outro lugar, justamente porque precisa ser conhecido, descoberto, explorado.

Essa permissão pela busca do que não existe pode ser a chance de nos desvencilharmos dessa nostalgia do futuro para abrirmos as possibilidades do novo ser tão bom quanto (ou muito melhor do que) o velho, por mais estranho que isso possa parecer. O desconhecido permite que se possa criar – diferente do conhecido, que, paradoxalmente, além de servir como fonte de inspiração, também limita, seja pelo que achamos que representa, seja pelo que os outros acham que representa. Não é possível dizer que o que já existe não permite a criação, evidente – mas impõe certos limites que, por vezes, dificulta que se crie algo novo ou que, simplesmente, ultrapasse-se o velho...

Longe do pensamento jurídico do dever ser (bem longe, aliás: não pretendo aqui prescrever como devemos nos comportar ou agir), estou cada dia mais convencido da idéia de que na pós-modernidade (ou mega, hiper, supermodernidade, tanto faz) devemos nos permitir pensar além, sob pena de continuarmos a escrever a história desde o ponto de vista dos vencedores e, naturalmente (e sem o perceber, o que é pior), negligenciarmos os vencidos. Se a incerteza reina absoluta na contemporaneidade, o que poderia ser mais incerto que o desconhecido, ou o novo? Aliás, o desconhecido nem incerto é, pois sequer existe – ou, para ser menos radical, preferimos acreditar que atinge a incerteza muito próximo ao seu grau máximo (se é que é possível medir a incerteza...).

Um questão: o que vale mais: continuar tentando criar a partir do velho ou buscar criar algo novo desde uma perspectiva nova? A mesma Estamira diz que não podemos sair jogando as coisas no lixo o tempo todo, como se não pudessem ser reutilizadas. Mais uma vez, acho que está certa: do contrário, e poderíamos jogar tudo (e talvez todos) no lixo. Bauman diz que as pessoas foram transformadas em coisas (cf. A Vida para Consumo: a transformação de pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008). Também ele está certo, e concluo eu, então, que certamente também poderão ser jogadas no lixo, descartadas, como mercadorias que são, caso não se preste atenção no que estamos fazendo.

O problema, ao que parece, está na percepção daquilo que devemos levar ou manter conosco e daquilo que devemos simplesmente ultrapassar. Nunca vamos conseguir ultrapassar tudo, é claro, mas, em alguns momentos, a essa passagem é o melhor caminho para sairmos de um círculo vicioso que – esse sim – não nos permite ir além. Dar-se conta do círculo vicioso, então, parece ser um bom caminho: não se joga nada (nem ninguém) no lixo, mas se abrem perspectivas novas, para que se possa ir, afinal, adiante.

O ponto central, então, seria a autocrítica. Ela me parece ser, por fim, a chave para nos conhecermos melhor e, a partir do que soubermos (o conhecido), permitirmo-nos ir além, ou seja, atrás do novo (o desconhecido). Mas nada disso adiantará se não tivermos autonomia: o melhor mesmo é que cada um pense por conta própria e consiga concluir o que é melhor para si e para os outros, dentro dos limites e das possibilidades existentes.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Quando faltam as palavras...

Ultimamente, em virtude das alterações no CPP e das aulas de Penal I (que sempre me tiram o sono), minha leituras estão voltadas apenas para os livros jurídicos.

E é incrível o que estou constatando: literalmente, estou me sentindo vazio, sem ter muito o que escrever. Reflexo disso é o tempo que levei pra escrever este post... Não que alguma vez eu tenha me sentido cheio de idéias mirabolantes e geniais, e que meus posts anteriores sejam lá grande coisa, não é isso: o que quero dizer é que muito pouco (ou quase nada) aprendo com os livros jurídicos!

Admito que o conhecimento das matérias cresce bastante e, quando percebo isso, acho bom, pois o ganho é significativo: aprendo mais pras minhas aulas e pra advocacia. No entanto, não aprendo quase nada em termos de vida. Aliás, aprendo que, cada vez mais, os livros jurídicos (notadamente os famigerados manuais) não têm muito o que dizer aos estudantes e leitores em geral. Limitam-se tão-somente a trazer aquela matéria na íntegra, do início ao fim, sem propiciar grandes possibilidades de reflexão ao sujeito...

A inevitabilidade de ler esses livros é evidente, e nem pretendo deixar de lê-los. Claro que não! Mas isso me mostra que realmente não podemos esperar muito de quem SÓ lê esse tipo de livro: como esperar uma grande decisão de um juiz que só conhece os manuais? Ou uma grande defesa, de um advogado que não tem conhecimento de mais nada além da "matéria em questão"? Ou qualquer outra atitude diferenciada por parte de qualquer ator jurídico que nunca leu nada além desses livros medíocres?! Agora compreendo porque ainda tem muita gente escrevendo dissertações e teses sobre "O agravo de instrumento no ordenamento jurídico brasileiro", ou "Da apelação criminal: limites e possibilidades"...

Não sei se estou certo ou errado: o que sei é que isso me incomoda, e acho que é motivo suficiente pra não permanecer somente nessas limitações manualescas.

Vale repetir o que escrevi num post anterior: "Me vê mais um antimanual, por favor?".


sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Sobre (in)tolerância e direito (penal)...

Francisco Goya: "O Três de Maio de 1808" (1814)
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"A pretexto de preservar o 'princípio da segurança jurídica', a doutrina sói defender, no entanto, a necessidade de se adotarem critérios/métodos no sentido de encontrar a 'única resposta correta', invocando, para tanto, metáforas como o 'espírito da lei' e semelhantes, já em si uma tática argumentativa. No entanto, além de incorreto, isso não seria nem justo nem conveniente, pois uma tal idéia, absolutamente incompatível com uma sociedade multicultural e multifacetada, é própria de uma ideologia antiliberal, que não acolhe, antes rechaça, as diferenças - de sexo, de raça, de cultura etc. Ademais, pretender unir ciência à idéia de unidade, de pureza, de prefeição, quer se refira à política, quer se refira à religião, quer se refira ao direito, é sempre algo perigoso e tendencialmente tirânico, e que há de ser, por isso, permanentemente combatido. No particular, nada há, pois, a lamentar, muito ao contrário: com abolir semelhante preconceito, abrem-se novas possibilidades para um direito penal fraterno e mais democrático, porque reconhecer a incerteza e a diversidade no direito é reconhecer a incerteza e a diversidade mesma do humano. A não ser assim, poder-se-á substituir, no futuro, os atuais juízes por sofisticados programas de computador."

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 63-64.


Enfim, um manual de direito penal digno de nota. Ao longo do livro, a vontade de continuar a ler só aumenta, e o posicionamento crítico e coerente do autor demonstram, sem a menor dúvida, a qualidade da obra.

Excelente!

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O Dia do Meu Velório

René Magritte: "A la rencontre du plaisir" (1950)
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Continuo sem entender o motivo de tanta tristeza. Já está tudo marcado: amanhã, 11h, será o meu velório. O meu velório. Ou seja: estarei morto, falecido, duro, apresuntado! Mas, ainda assim, ela persiste...

Talvez seja justamente por isso: estou triste pois sei que, amanhã, já não estarei mais entre nós. Ou entre vocês? Não sei mais... “Entre os vivos”. Melhor assim. No entanto, diante dessa irrefutável fatalidade, penso que seria demasiado simples explicar a minha tristeza e a minha angústia pelo fato de que não mais viverei. Muito simples. Não é isso. Deve haver outro motivo...

Por mais que pense, não chego a nenhuma conclusão. Pode ser que seja por causa das despesas: contratei um serviço de distribuição de lenços – de papel e de pano, em diversos tamanhos e cores – e aluguei uma máquina de café expresso, pro pessoal que ficar muito tempo por lá e sentir vontade de tomar um. Não será preciso tirar o olho do defunto – ou seja, de mim: basta ir até a máquina e apertar o botão do café desejado.

Não, acho que isso também não é. Afinal, esse gasto eu já havia previsto desde os meus 19 anos, quando fui a um velório em que todos choravam e se lavavam com as lágrimas. Daí a idéia dos lenços grátis. E aos 22, fui a um em que as pessoas tomavam muito café – mas, para isso, tinham que deixar o presunto ali, às moscas, como se tivesse mesmo morto. Uma coisa é saber que a pessoa morreu. Outra, bem diferente, é deixar a carcaça ali, sozinha. Isso eu não gostaria para mim, pois geralmente as capelas em que se velam os mortos são um tanto assustadoras. Talvez a minha idade à época tenha colaborado pra me assustar, mas a questão é que fiz um planejamento matematicamente perfeito e, ao longo desses 46 anos desde então, juntei o suficiente para não ficar sozinho na capela e para oferecer, mesmo que post mortem, café aos meus convidados. Não sei bem se posso chamá-los de convidados, mas o fato é que convidei alguns. Outros, como é de praxe, certamente aparecerão de furo. É a lógica humana: só somos valorizados em morte, quase nunca em vida. Nem nos meus melhores aniversários, quando eu estava (estou?) vivo e convidava uma penca de pessoas, aparecia tanta gente! Tenho certeza disso: amanhã, quando já não mais estarei “entre os vivos”, teremos casa cheia. Vai entender...

Por falar em entender, concluo que também não é esse o motivo da minha tristeza. Talvez a tristeza não seja assim tão simples de ser explicada. Nem meus 32 anos de análise, agora, estão sendo úteis, pois não consigo ir além do que já fui na minha auto-interpretação. Se bem que posso estar vendo aquele filme que, segundo dizem, passa na hora da nossa morte, em que vemos e recordamos os melhores momentos de nossas vidas. Mas, no meu caso, tenho que admitir que não estou vendo esse filme. Estou, aliás, lembrando dos meus piores momentos. Lembro daquele dia em que vi minha melhor amiga ser humilhada em plena Praça XV por uns idiotas, e nada fiz. Covarde, apenas aguardei que eles saíssem dali para, “em segurança”, poder ir lá falar com ela. Catso!! Como pude ter sido tão passivo, tão inerte, tão babaca?! Nunca consegui superar isso, nem a análise ajudou nesse sentido...

Lembro também do dia em que aceitei, passivamente, que um vendedor de uma loja de roupas fosse humilhado na frente de todos pelo seu patrão. Nunca aceitei isso também, pois apenas mostrou que sou mesmo um covarde... apesar de não ter absolutamente nada a ver com a vida dele, deveria tê-lo apoiado, ter dito que errar é humano, essas coisas que, no momento certo, ajudam a amenizar um pouco... Como me arrependo de ter sido tão covarde... depois que a merda tá feita, fica fácil analisar e pensar na “solução”, eu sei disso – mas o fato é que não esqueço esses episódios lamentáveis do meu passado, da minha memória, triste memória...

Uma outra possibilidade é o fato de que, em vida (não sei por qual razão falo como se já estivesse morto...), não consegui descobrir o sentido da própria vida. Afinal, como eu amanhã – e vocês, com certeza, no futuro – acabaremos todos em capelas, velórios, caixões, cemitérios... Acabaremos todos “mortinhos da silva”, em suma. Quais seriam os motivos das guerras, da violência, da humilhação, das bombas atômicas, das mortes banais, dos campos de concentração, do racismo, do machismo, dessas desgraças todas?! TODOS, sem exceção, acabaremos MORTOS. Isso é inexorável, é a regra que confirma que todas as regras têm uma exceção. Em sendo a única exceção, confirma a regra! Então, por que tudo isso?! Onde se escondem os humanos? Atrás de armas, grades, portarias, equipes de segurança? Links, nicknames, mecanismos supermodernos na tentativa desesperada de estabelecer pseudo-relacionamentos...? Onde está toda a gente que, dizem, habita este planeta?! 6 bilhões de pessoas!! Imagino quantas pessoas interessantes não existem por aí... A pena é que só conhecemos poucas delas. Pelo menos foi o que aconteceu comigo... Talvez pela minha covardia, sempre temi sair por aí e falar com qualquer um que me cruzasse o caminho... A minha covardia... Bah...

Acho que, como diria o Analista de Bagé, “isso não é um problema, é frescura! Problema é a zaga do Guarani, que tá desfalcada pro próximo jogo!” Certamente ele me daria um joelhaço, não tenho dúvida... Ele diria também que não posso me preocupar com o que não está ao meu alcance, eu sei. Mas eu me preocupo com essas coisas, fazer o quê?! Paciência... Acho que vou ficar triste pelo resto da minha vida... até amanhã, pra ser mais exato...

Então, talvez essa seja a resposta pra minha tristeza: não ter conseguido entender as pessoas. Nenhuma delas eu entendi! Uns são felizes sem nada: sem família, emprego, amizades, saúde... outros, com família, excelente emprego, muitas amizades e perfeita saúde, conseguem ser tão idiotas... Quem poderia entender isso?! Acho que o caráter demasiado humano, do título do livro do Frederico, seja justamente esse: a incompreensibilidade de todos nós, de nossos atos, violências, assassinatos, guerras, fome, pobreza, miséria, problemas, tristeza...

Acho que estou me preocupando demais para o último dia da minha vida. Sou um cara prático, embora não pareça. O fato: amanhã estarei morto. O problema: estou triste. A “questã”: por quê?! Por que diabos estou triste se amanhã estarei morto?! ISSO é que não dá pra entender...

Bom, estão todos convidados: amanhã, 11h, na capela “K” do cemitério municipal. Lenços e cafés por minha conta. Quem for ao meu velório, peço que carimbem o ticket do estacionamento na saída, pois fiz um convênio com o cemitério para liberá-los também desse gasto. Só não me responsabilizo por quem beber cerveja (que também estarei oferecendo, para aqueles que se acham “moderninhos”) e tiver que assoprar o bafômetro numa blitz depois. O Cel. Mendes tá por aí, e vai pegar vocês!! Ele eu também nunca entendi direito... mas a essa altura do campeonato, não vou perder meu tempo com esse sujeito...

Claro que alguns canapés também estão incluídos no serviço de lenços. Não admitiria alguém passando fome enquanto eu estarei lá, deitado, morto, inanimado e sem fome, claro. Fome zero no meu velório!!

Já é quase amanhã, e estou chegando ao final dessa jornada. 66 anos (“sessenta e seis”, não tinha me dado conta do número!!) de inconsistência, tristeza, alegria, angústia, desespero, felicidade, desamparo, despreparo, doenças, curas, livros, filmes, pessoas, covardia... o tempo passa enquanto nem o vemos passar, e estamos sempre reclamando da sua falta. Gozado isso...

Bom, vou pedir uma pizza. A última, prometo! Hehe... Orgulho-me de, à beira da morte, conseguir manter meu sarcasmo!! Metade 6 queijos, metade calabresa gorda com ovo e cebola. Vou pedir uma de chocolate também. Mas pequena, pra não comer demais. Amanhã preciso entrar no terno preto que mandei fazer...

Vou pagar a pizza com cheque, pra ver como farão para descontá-lo. Na verdade, acho que não estarei mais aqui para ver, mas tentarei enxergar do lado de lá... não deixo herdeiros (sempre achei que filhos não significavam a possibilidade de nos perpetuarmos na vida... tanto é que meu mausoléu também já está pronto: isso sim é perpetuação!!), não deixo dívidas, não deixo saldo no banco... não deixo nada, pra dizer bem a verdade. Nem saudades eu deixo. Aliás, tudo isso pra uma meia-dúzia de pessoas que irão ao meu velório amanhã. Sim: o Afonso, do banco (eu era [ou sou, não sei mais] funcionário do Banco do Brasil), a Silvinha, da portaria do prédio (pessoa amarga, mas gente-fina), o Preto (gerente do banco), o Seu Isolde (segurança do banco), e a Dona Margarida, eterna síndica do prédio, que sempre reclamou da minha passividade nas reuniões de condomínio... Pelo menos eles terão um velório digno. Ou melhor: eu terei um velório digno. Eles desfrutarão dessa dignidade...

Chegou a pizza. Mais simbólica, impossível: tudo na minha vida sempre acabou em pizza. Nada como terminar a própria vida em pizza. Fui. Será a minha última janta. Não quero perder mais nem um segundo, pois já perdi todos os outros... Espero não encontrá-los em breve.

Adeus.

sábado, 2 de agosto de 2008

"O Menino do Pijama Listrado": ou "o Não-Lugar do nazismo e a Ética da Alteridade"



Por recomendação de uma querida e estimada amiga, li "O Menino do Pijama Listrado", do irlandês John Boyne (SP: Cia. das Letras, 2007). Geralmente tenho minhas restrições a livros que se encontram em listas de "mais vendidos", mas como se tratava de indicação de uma de minhas amigas que mais respeito, seja pela sua fantástica perspicácia, seja pela sua impressionante capacidade de separar o joio do trigo, não vi motivos para não arriscar.

Advertido por ela de que no início poderia achar o livro um tanto quanto infantil, persisti na leitura por um ou dois capítulos, até ser completamente envolvido pela história. Trata-se de um romance em que o protagonista Bruno, de 9 anos, filho de um comandante nazista, faz amizade com um judeu de mesma idade - Shmuel. Enquanto Bruno está chateado por ter se mudado de Berlin - onde sua casa era ampla e misteriosa o suficiente para nunca o deixar cair no tédio - para "Haja-Vista" (maneira como Bruno entendia "Auschwitz", pois ele nem sempre compreendia o que diziam os adultos), onde sua casa era menor e sem amigos por perto, ele conhece Shmuel, que estava no campo. Quando não tinha nada para fazer, Bruno saiu a "explorar" o local e, por acaso, encontrou seu amigo judeu.

A diferença entre ambos era uma só: Bruno era alemão, e Shmuel, judeu. E o que os afastava era a cerca, que separava esse campo de Auschwitz do resto do mundo. Diante da separação forçada, desenvolveram uma sólida amizade, e Bruno nunca entendeu o motivo de Shmuel não poder atravessar a cerca para brincar com ele.

Antes de mais nada, trata-se de uma inovação em termos de histórias do Holocausto: enquanto muitos relatam as suas experiências do lado de dentro (Primo Levi, na minha opinião, traz a mais importante delas), Bruno narra tudo do lado de fora. Nunca entendeu também qual a razão de todos usarem "o mesmo pijama listrado"...

Sem perceber, igualmente, que seu pai era diretamente ligado ao nazismo, Bruno o via como um ícone, como um herói. O "Führer" era, na compreensão de Bruno, o "Fúria" (mais uma excelente sacada do autor, além de Haja-Vista/Auschwitz), que sempre dava as ordens e era, segundo ele mesmo, "um sujeito muito grosseiro".

Apesar de algumas vezes o autor utilizar estilos lingüísticos extremamente irritantes e da inteligência de Bruno ser um pouco exagerada em alguns momentos para um menino de 9 anos, a riqueza da obra é inegável: trata-se, antes de mais nada, de uma verdadeira aula de ética da alteridade, em que, dos olhos desse mesmo menino, todas as distinções raciais e étnicas "criadas" e "forjadas" pelos seres humanos são, inegavelmente, meras criações absurdas mesmo. Desvinculado de todo e qualquer rótulo ou representação, Bruno percebe que cada pessoa possui seus próprios pensamentos, suas próprias idéias e seus próprios problemas, enxergando no Outro um ser humano como qualquer outro: angustiado, ansioso, feliz, triste, etc. Ao mesmo tempo em que tenta lidar com os seus problemas, Bruno dá voz justamente àqueles que nunca puderam falar, e isso faz com que consiga se encontrar, na melhor concepção ética do termo, com o Outro.

Não avanço mais no relato pra não falar do final - igualmente forte e violento - embora vontade não falte. Apenas confirmei que nem sempre os nossos próprios rótulos para os livros são verdadeiros, e que mesmo um tema já exaustivamente trabalhado pode ser repensado de forma original, uma vez que desde outros olhares.